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Sociedade
15 janeiro 2022 14:19
Em 2020 bateu-se o recorde da década com 541 automóveis por mil pessoas, com contributo dos usados importados
15 janeiro 2022 14:19
O primeiro ano de pandemia reduziu o trânsito, os acidentes rodoviários, o número de mortes na estrada, a venda de automóveis novos, os passageiros nos transportes públicos, a quantidade de autocarros, camiões e até de novas cartas de condução. Mas também foi em 2020 que o número de carros em Portugal subiu pelo oitavo ano consecutivo, saltando para o valor mais alto da década. Contam-se 5,6 milhões de automóveis ligeiros de passageiros em circulação: são 541 por cada mil habitantes, isto é, mais do que um carro (1,3) por família, segundo os dados do Instituto de Mobilidade e Transportes (IMT) e do Instituto Nacional de Estatística (INE).
“É surpreendente que o número continue a crescer. Esperava que, pelo menos, já tivesse havido uma estabilização”, resume Filipe Moura, especialista em mobilidade e professor no Instituto Superior Técnico (IST), lembrando que este indicador continua a estar muito associado à riqueza e ao poder de compra. “Os dados mostram uma correlação forte entre o número de carros por mil habitantes e o PIB per capita. Ou seja, com mais dinheiro disponível, as pessoas tendem a comprar mais carros.”
Apesar de ter havido uma quebra significativa na compra de automóveis novos em 2020, o “Anuário Estatístico da Mobilidade e dos Transportes”, do IMT, publicado recentemente, aponta para mais 114 mil carros em circulação. Uma das explicações possíveis para essa subida, indica o IMT ao Expresso, é o “aumento do número de veículos usados que foram importados”. De facto, logo a seguir ao primeiro confinamento, a procura por carros em segunda mão disparou, incentivando a sua importação, que se manteve no ano passado. Para isso contribuiu também a falta de automóveis novos, em parte motivada pela escassez de semicondutores (ou chips) que tem estado a afetar a produção a nível mundial.
O crescimento contínuo do número de carros em Portugal ao longo dos últimos anos resultou então da combinação entre a compra de automóveis e a importação de veículos novos e usados, segundo o IMT. “O aumento foi mais acentuado na segunda metade da década, acompanhando, de uma forma geral, a evolução do crescimento económico registado a nível nacional durante esse período.” Por enquanto não há dados relativos a 2021, mas os especialistas não acham expectável uma inversão da tendência, até porque a venda de carros novos teve um ligeiro aumento face a 2020, segundo as estatísticas da Associação do Comércio Automóvel de Portugal (ACAP).
“Esta taxa de automóveis por mil habitantes é um alerta. Mas não é um indicador rigoroso para medir o peso da utilização do carro nas cidades, que é a situação mais grave. Sabemos que em 30 anos o peso do carro nas deslocações diárias mais do que triplicou, sacrificando as funções pedonais”, sublinha Frederico Moura e Sá, urbanista e professor da Universidade de Aveiro. “Em 1991, só um quinto das deslocações eram feitas de carro e 40% eram a pé. Em 2011 o carro já representava mais de 60% e o modo pedonal apenas 16%. O ano de 2021 parece espelhar um acentuar dessa realidade.”
Empurrados para a periferia
Por trás da crescente dependência do automóvel nas cidades e do aumento do número de carros estão duas razões, segundo João Joanaz de Melo, professor de Engenharia do Ambiente na Universidade Nova de Lisboa. “Primeiro, a falta de qualidade do serviço de transportes públicos, que não dá resposta às necessidades. A regularidade e ligação entre transportes é má e a frequência é insuficiente. É verdade que o programa que permitiu reduzir o preço dos passes (PART) tornou a mobilidade mais acessível, mas falhou na redução do tráfego automóvel nas cidades.” À falta de qualidade do serviço, diz o especialista, junta-se a realidade recente dos jovens empurrados para zonas suburbanas devido ao preço das rendas no centro das cidades. “Estas pessoas, que em muitos casos foram para locais mal servidos de transportes, perceberam que, efetivamente, precisam de um carro para se deslocarem, porque não têm uma alternativa viável.”
A pandemia também não veio ajudar: ao conforto de ter carro próprio juntou-se o receio de partilhar um transporte coletivo. No início deste ano letivo e no regresso ao trabalho, a compra de passes nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto estava entre 25% e 30% abaixo do normal. E em ambas as cidades o tráfego diário mantinha-se acima do normal. Segundo dados da TomTom, plataforma de análise de trânsito, desde o dia 21 de setembro até ao final de 2021 o nível de congestionamento esteve acima do nível pré-pandemia em 60% dos dias em Lisboa e 40% no Porto.
Portugal continua a estar muito dependente do automóvel e, para o urbanista Frederico Moura, esse é um grande desafio da sociedade. “Não vale a pena ocultar o papel que o carro continuará a ter nas deslocações. Ocultar essa realidade é compactuar com ela. O importante é que a promoção da descarbonização não seja encarada como uma agenda universal, de forma desterritorializada, como se o país fosse todo igual.”
Substituir por elétrico não chega
A venda de carros elétricos ou híbridos deu um salto nestes anos de pandemia. Segundo a ACAP, a compra disparou 54,2% em 2021, face ao ano anterior. E a aposta tem muitas vantagens, sobretudo para o ambiente, mas não diminui a dependência do automóvel em Portugal. “A tecnologia do automóvel elétrico é mais eficiente no consumo de energia e reduz os níveis de poluição no interior da cidade. Mas a mera substituição de um carro por outro não contribui para diminuir o congestionamento nem para melhorar a eficiência do sistema ou resolver o problema da escassez de recursos”, alerta João Joanaz de Melo.
Para o especialista, o Estado deveria estar a aplicar fundos na eficiência energética dos transportes públicos e na melhoria da qualidade do seu serviço, “em vez de subsidiar automóveis elétricos privados”. Filipe Moura, professor do IST, aponta para o mesmo problema. “Perante os incentivos dados pelo Estado, cada marca de automóveis personalizou os seus produtos para se encaixarem nos limiares abrangidos pelos descontos. Isso incentivou a compra de automóvel e aumentou o acesso à sua aquisição.”
Apostar no abate de carros antigos é prioritário, assim como também é importante travar a entrada de mais automóveis no centro das cidades, onde o problema é mais grave, defende Filipe Moura. “O debate das portagens urbanas é cada vez mais urgente. Para ter carro é preciso pagar anuidade da utilização do espaço público e não cortar pela metade o custo do estacionamento, mesmo para os elétricos. Caso contrário estamos a criar uma sociedade ainda mais dependente do automóvel.”
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