Mensagem de Lisboa
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Naquela sexta-feira, 22 de setembro de 2000, Lisboa celebrava o primeiro Dia Europeu Sem Carros, fechando um enorme perímetro da cidade ao trânsito automóvel. Do viaduto de Alcântara até Santa Apolónia e da Avenida Calouste Gulbenkian, passando pelo Campo Pequeno, até à praça do Areeiro – os carros não entravam nas ruas da cidade.
As habituais centenas de milhares de automóveis que todos os dias cruzavam as entradas da cidade – em 2018 eram 370 mil – ficaram em casa. Quem naquele dia se deslocava de carro para o trabalho, para a escola e para os afazeres diários teve uma decisão para tomar. Ou apanhava transporte público ou ficava em casa.
Apesar de algumas confusões registadas às portas da cidade, a experiência “foi respeitada” e, dentro do enorme perímetro, “havia muito pouco trânsito”, recorda José Manuel Viegas, professor emérito da Universidade de Lisboa e presidente da Tis.pt – Consultores em Transportes Inovação e Sistemas, S.A.
Pelas ruas da Baixa, só táxis e transportes públicos podiam circular e eram muitas as pessoas que escolhiam a bicicleta para chegar ao destino. O dia inédito, que deixou as ruas de Lisboa por conta das pessoas, aconteceu no mandato de João Soares. Voltou a realizar-se em 2001, mas, desde então, nunca mais a cidade fechou a porta aos automóveis num perímetro tão alargado, superior ao da prevista Zona de Emissões Reduzidas (ZER) para as zonas da Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado.
Em 2002, a Comissão Europeia implementava a Semana Europeia da Mobilidade. Desde então, Lisboa participou no evento europeu todos os anos, com a exceção de 2006, preenchendo a agenda com iniciativas relacionadas com a mobilidade sustentável e integrando na agenda a celebração do Dia Europeu Sem Carros, que decorre no dia 22 de cada mês de setembro. Este dia, apesar do nome, raramente se faz sem carros.
José Manuel Viegas viveu o dia 22 de setembro de 2000 na cidade, dentro do perímetro – era lá que trabalhava, no Instituto Superior Técnico, e vivia. Lembra-se de perguntar aos colegas se estavam a pensar deslocar-se de transportes públicos. Responderam-lhe: “não, nem pensar nisso, nem sei usar os transportes públicos. Nesse dia vou ficar em casa”. Naquele dia, o professor universitário foi de autocarro, mas muitos dos seus colegas abdicaram de sair para trabalhar porque não sabiam como fazer sem o automóvel.
Para José Manuel Viegas, encerrar um perímetro alargado da cidade ao trânsito automóvel “não fez [sentido]” em 2000. E também “não faria hoje”, sublinha. “Esta semana não pode ser vista como um momento isolado em que naqueles dias todos vamos beber um grande whiskey. Não. Tem de ser o culminar de um processo e esse processo não tem estado em curso”.
“As pessoas não sabiam sequer onde se compravam os bilhetes de transporte público. Além disso”, acrescenta, “muitas pessoas que usam o carro todos os dias não fazem ideia de qual é a linha de autocarro que as serve”. Na altura, as pessoas entenderam o encerramento à circulação automóvel como um pedido para que ficassem em casa.
Segundo o MOVE 2030, o documento orientador da estratégia de mobilidade de Lisboa para a próxima década, em 2017, 46% das deslocações na cidade eram efetuadas de automóvel particular e apenas 22% era feita com recurso à rede de transportes públicos. Até 2030, a Câmara Municipal de Lisboa quer que as deslocações feitas com automóvel alcancem os 34%, uma descida de 26% na utilização do carro.
O professor emérito coloca o foco na importância da redução da dependência automóvel e considera que esta só pode ser alcançada através da criação de “alternativas”. “Tem que ser um processo gradual”, diz. A “batalha importantíssima” que hoje é travada é a que se propõe a “levar as pessoas que andam sempre de carro a de vez em quando experimentar outras soluções. Tem de ser um processo de experimentação e sedução e não de proibição à bruta”, diz. “Esta semana da mobilidade devia ser o clímax deste processo”.
Para tornar o transporte público mais atrativo a quem hoje não o considera uma hipótese, José Manuel Viegas aponta para uma medida anunciada esta semana pela Fertagus – empresa que explora os comboios que passam na Ponte 25 de Abril e circulam entre Setúbal e a estação Roma-Areeiro. A empresa implementou esta semana um serviço que permite aos clientes realizar a viagem apenas com um cartão bancário com tecnologia contactless, bastando validar o cartão nas máquinas da operadora e entrar no comboio. “Isso diminui a barreira à entrada”, sublinha o especialista em mobilidade.
Este ano, os planos da cidade para a Semana Europeia da Mobilidade foram modestos e neste dia 22, o Dia Europeu Sem Carros, não haverá nenhuma rua fechada ao trânsito automóvel. No concelho vizinho de Almada, foi encerrada à circulação automóvel uma importante parte da sua zona ribeirinha.
No meio de debates, sessões de cicloficina e experimentação de bicicletas elétricas e de carga, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu encerrar apenas uma rua no passado domingo – a Alameda Edgar Cardoso, junto ao Parque Eduardo VII, uma estrada que serve sobretudo de acesso a estacionamento automóvel e sem grande importância na rede viária da cidade. Encerrou no passado domingo, para acolher a Feira da Mobilidade, um evento que contou com animação de rua, uma escola de trânsito e a experimentação de trotinetas e bicicletas.
Por seu turno, a Junta de Freguesia da Penha de França foi a única a decidir encerrar um troço numa das suas principais artérias, no passado dia 17, a Rua da Penha de França. O encerramento, junto ao Mercado de Sapadores, serviu de palco à Playstreet, uma rua de brincadeiras, num convite usufruto público da rua por parte da comunidade local e, sobretudo, das crianças.
Na Área Metropolitana de Lisboa, apenas Setúbal anuncia o encerramento de uma importante artéria durante o Dia Europeu Sem Carros – das nove da manhã às cinco da tarde, a Avenida José Mourinho, que percorre parte da zona ribeirinha da cidade, vai estar encerrada ao trânsito automóvel.
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Pela Europa há várias cidades que fecham ruas hoje. Gent fecha a sua zona R40, central. Na Coruña a rua de San Andres vai passar a não ter carros aos domingos. Em Gijón, a zona de San Lorenzo vai estar fechada, na Avenida Rufo García Rendueles. Em Saragoça, a Ponte e a rua Don Jaime I de Aragón vão estar fechadas. Na Alemanha, a cidade de Bielefeld vai fechar 12 ruas, Dortmund vai fechar duas grandes praças. Budapeste fecha uma zona importante e Lyon fecha um perímetro em cada um dos seus bairros.
Fernando Nunes da Silva, especialista em mobilidade e professor catedrático em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico, olha para o encerramento da Alameda Edgar Cardoso como “uma opção um bocado coxa” e como uma escolha tomada para “não interferir com o trânsito”.
Para o Dia Europeu Sem Carros, não reconhece benefícios no encerramento de um perímetro como o de 2001, nem sugere um ensaio ao perímetro anunciado em 2020 para a nova ZER da cidade, por tratar-se de uma área “demasiado alargada”, mas encontra “todas as condições” para encerrar por um dia o trânsito em ruas importantes da cidade e em locais em que o movimento pedonal e a dinâmica comercial o justifique.
Indica como principais candidatas a Rua Nova do Almada e a Rua Garrett, no Chiado. “Pelo menos essas”, afirma, sugerindo também o encerramento ao trânsito da praça do Rossio e das ruas da Prata e do Ouro, na baixa da cidade, que neste semana poderiam “funcionar apenas para transportes coletivos, fazendo um alargamento dos passeios e [criando ligações] cicláveis. É bastante fácil de fazer, de montar e desmontar”, diz o também ex vereador da mobilidade e dos transportes na Câmara Municipal de Lisboa, entre 2009 e 2013.
À semelhança de José Manuel Viegas, Fernando Nunes da Silva também viveu na cidade o Dia Europeu Sem Carros de 2000 e recorda-se “da confusão que foi na Praça de Espanha” – um dos limites impostos para o perímetro. “As pessoas iam tentando encontrar formas de chegar ao seu destino” e muitas outras acabaram por não ir trabalhar, conta.
O especialista, que participou no projeto de redesenho da rotunda do Marquês de Pombal e nas alterações ao esquema de circulação nas laterais da Avenida da Liberdade, apresenta uma outra ideia para a Semana Europeia da Mobilidade: “testar uma intervenção mais duradoura – nas laterais da Avenida da Liberdade só permitir o acesso logístico”. Esta mudança, proposta inicialmente por Fernando Nunes da Silva enquanto era vereador com a pasta da mobilidade, permitiria “alargar os passeios e ligar os edifícios às placas arborizadas da Avenida da Liberdade”.
Para o professor catedrático, a semana celebrada em centenas de cidades e vilas europeias deve servir para divulgar a adoção na cidade de “boas práticas” ao nível do planeamento da mobilidade – medidas como adoção de zonas 30, que em breve devem passar a ser a norma nos bairros lisboetas e medidas de acalmia de tráfego.
Ao contrário daquilo que tem sido comum em edições anteriores, a Câmara Municipal de Lisboa não associou à celebração da Semana Europeia da Mobilidade deste ano a concretização de medidas permanentes de promoção da mobilidade sustentável, como a construção de novas ciclovias, a melhoria das condições de acessibilidade pedonal ou a adoção de medidas de acalmia do tráfego automóvel.
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Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
2 Comentários
22 de Setembro de 2022, atrevo-me a dizer, foi tão só o pior dia de tráfego automóvel de sempre em Lisboa. Sou motorista.
Eu considero isto mais uma prova de um redondo falhanço governamental. Talvez as tentativas anteriores já o tivessem sido por falta de comunicação e o típico mau planeamento português. Por essa razão, desistir desta ação bonita e cheia de significado, que é celebrar o dia sem carros, acho que é de uma cobardia sem igual. Cobardia, desistência e falhanço total.
Cortar algumas grandes ruas de uma capital, levar para elas as pessoas, fomentar o encontro, dar espaço às artes, ao jogo e a sociabilização, era dinamizar a cidade, alegrar e dar esperança a uma população deprimida e desiludida (com razão).
Tenho uma filha para educar e tenho pena que seja tão difícil ela orgulhar-se da cidade onde escolhemos viver. Quero lhe transmitir ideias positivas e de esperança no futuro. Mas assim não dá.
Estou cansada desta apatia geral!
Tanto retrocesso e tanta burrice
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