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13 julho 2016 8:00
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ACOLHIMENTO. Seis das famílias portuguesas de acolhimento, com os respetivos “filhos adotivos” ucranianos. Para saber quem são, tem de ler o texto
antónio pedro ferreira
13 julho 2016 8:00
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Quando uma criança anda na escola, faz trabalhos de casa para consolidar a aprendizagem. Quando a Europa se fecha sobre si mesma, há que fazer exercícios para formar cidadãos mais abertos ao Outro. E quando não é fácil aprender a lição, repete-se, repete-se, repete-se. Até que a mensagem se torne automática.
Em 2015, o Colégio São João de Brito, em Lisboa, recebeu crianças ucranianas, cujas famílias foram apanhadas pela guerra que há mais de dois anos se instalou no país matando pelo menos nove mil pessoas, segundo as Nações Unidas. E cerca de 1,7 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas devido ao conflito entre ucranianos e separatistas pró-russos.
Os pequenos ucranianos do São João de Brito dão rosto a estes números. Tirando uma menina de 11 anos que ainda vive em Donetsk, todos fazem parte de famílias deslocadas das suas terras de origem devido ao conflito. Algumas ficaram órfãs. Outras viram os pais serem gravemente feridos ou ficarem incapacitados. Todas são apoiadas por um orfanato local. O programa Abraço — como foi chamado pelo colégio e pela Casa da Ucrânia, parceiros que tentam viabilizar a vinda das crianças, com o apoio de várias instituições portuguesas e ucranianas — foi repetido este ano. E a promessa já está feita, voltará a cumprir-se em 2017. Há que se repetir e repetir, até que a mensagem esteja consolidada.
António Valente, diretor do Colégio São João de Brito, explicou esta atitude na cerimónia de encerramento que reuniu todos os participantes no programa esta segunda-feira. “Tentamos com este tipo de iniciativas ajudar a educar melhores cidadãos no futuro, melhores europeus, pessoas mais integradas, sobretudo num momento tão difícil para a Europa”, afirmou ao Expresso. Disse que vale a pena o investimento e também que “há um grande benefício para as crianças portuguesas”. Porque, defende, “saber acolher a diferença é cada vez mais importante”. E por isso tudo prometeu que no próximo ano o colégio voltará a abrir portas para este Abraço.
No âmbito do programa, quinze crianças ucranianas entre os 11 e os 15 anos estiveram quase três semanas em Portugal. Foram recebidas por 15 famílias portuguesas e tiveram 15 “amigos” da mesma idade a acompanhá-las. Um exercício de convivência em que a aprendizagem do Outro era a principal tarefa. Na festa de segunda-feira, quase na véspera da partida dos meninos e meninas ucranianos, foram apresentados os resultados. Os pais portugueses ganharam diplomas e abraços apertados dos pequenos ucranianos. As crianças de lá e de cá cantaram em conjunto e representaram uma peça, simulando o período em que estiveram juntas. Ao Expresso, pais e filhos contaram as suas histórias, falaram das dificuldades de levar o Outro para dentro de casa, e, sobretudo, mostraram-se disponíveis para repetir o desafio. Afinal, dizem, o que se recebe é sempre tanto ou mais do que se dá.
Família Líbano Monteiro, com Nazar (último da esquerda)
antónio pedro ferreira
Nazar aos 12 anos é um pequeno grande homem. Respeitoso, nunca passava em primeiro lugar pelas portas. À sua espera teve Zé, um grande pequeno homem, dois anos mais novo. Entenderam-se, com as suas diferenças, criaram cumplicidades. Nazar integrou-se numa família numerosa, com seis filhos, entre os 19 e os dois anos. Filipa, a mãe, diz que tudo “correu muito bem” e que numa família com tantas pessoas até é mais simples porque “todos ajudam e acaba por ser mais divertido”. As raparigas e os rapazes mais velhos (eles ausentes da fotografia) “foram extraordinários”. Nazar era tímido e a língua foi um problema que se fez sentir, mas eles estiveram lá quando foi necessário. Nazar “nunca se queixou de nada”. Órfão de pai, pediu um dia para telefonar para a mãe, na Ucrânia, mas não chorou. Filipa fez questão de dizer então que ele era “um muito bom menino”. Agora, que a despedida se aproxima, a família sabe que vai custar perder o rapazinho ucraniano. Marta, a pequenina, terá de perceber quando ele já não estiver em casa, porque era por ele que perguntava assim que acordava. Nazar, que aprendeu a cantar o hino português com a mão posta sobre o coração. No futuro? “Claro que ele pode voltar.”
“Sim, se pudesse passaria cá todos os verões”, Nazar não hesita em responder ao convite. Mas diz que não morava em Portugal. “Não trocaria a Ucrânia nem os amigos”, acrescenta, muito orgulhoso. Sobre a impressão mais positiva da sua estadia em Portugal, o pequeno grande homem confessa ao Expresso que ficou admirado com a constante boa disposição da família adotiva: “Mesmo quando estive doente, o pai, a mãe e os seis filhos estiveram sempre ao meu lado com um sorriso e a puxar por mim”. Adorou o oceano, as laranjas que crescem nas árvores. Sobre a Ucrânia só mais uma menção, com os olhos postos no chão: “Infelizmente continua tudo na mesma”
Família Dantas, com Iryna (à frente)
antónio pedro ferreira
Iryna, quase a completar 11 anos, é a única que ainda vive numa zona de conflito. Não se nota. Alegre, irreverente, unhas das mãos e dos pés pintadas de cores diferentes, é a segunda vez que vem visitar os Dantas. Em 2015 já tinha participado no Abraço e, devido à fragilidade da sua situação social, voltou. Em Lisboa, esperavam-na três amigos: Francisca, dez anos, Madalena, 20, Santiago, 22 anos. Como no ano passado, a língua continuou a ser o maior obstáculo, mas muitos jogos de cartas de Uno ajudaram a resolver as lacunas que a falta de vocabulário ia impondo. “Foi um desafio e decidimos arriscar”, conta Manuela, a mãe daquele núcleo sorridente e aberto à diferença. Birras, só as normais nas crianças da mesma idade. Atitudes que refletissem traumas de um passado mais complicado? “A tensão, quando um carro de bombeiros passou por nós”, partilha Manuela. Então, quem é Iryna? “Uma sobrevivente”, concordam os pais. Tão capaz de sobreviver que nunca pediu para ficar em Portugal: “Ela parecia saber que era provisório”. Órfã de pai e mãe, protegeu-se ao não pedir mais do que aquilo que lhe era dado, fossem prendas, fossem afetos. De tal forma que para ela, prometem, “as portas estão 100% abertas.”
A irrequieta Iryna não teve muito tempo para responder às perguntas que lhe íamos colocando. “Tenho três minutos”, explica muito assertiva, “tenho de ir ter com os rapazes”. Neste curto espaço de tempo, soubemos que a família foi mesmo o que mais gostou durante a sua estadia em Portugal. “São todos tão bondosos”, diz, com os olhos azuis a brilhar. Mas apesar de estar num dos “melhores sítios do mundo”, estava ansiosa para voltar para junto dos irmãos. E será que Iryna moraria em Portugal? “Se tudo fosse possível, se pudesse estar cá com a minha mãe e os meus irmãos, ficaria para sempre”. E três minutos depois, a rapariga das unhas coloridas fugiu para o recreio, com muitas gargalhadas pelo meio: “Nunca bebi tanta Coca-Cola. Olha para mim! Não consigo parar de sorrir!”.
Família Madeira, com Aleksandra (ao centro)
antónio pedro ferreira
Carminho, miúda cheia de iniciativa, como contam os pais, é que decidiu participar neste Abraço. Com 13 anos, levou para casa a ideia de acolher uma rapariga ucraniana. Um ano mais nova, Aleksandra trouxe os longos cabelos castanhos, muita timidez e as reações típicas de uma pré-adolescente. Trouxe um telemóvel e as suas rotinas. Encontrou mais dois rapazes: o irrequieto Vicente, quase quase a completar seis anos, e Francisco, com a maturidade dos 16. Pelo caminho ficaram as dúvidas, sobretudo do pai, Rogério, preocupado, antes da chegada, com a dificuldade do momento da partida. Com a dor da separação, quer para quem vai, quer para quem fica. “Mas como dizer que não? Dizer que não temos comida, espaço? Mas temos. Como recusar?” Não recusaram Aleksandra, que não trouxe nem medos, nem traumas. Dormiu sempre com a luz do quarto apagada. Órfã de pai, sofreu no dia em que deveria ter comemorado o aniversário dele. Mas resistiu. E Carminho também resistiu e teve de aprender a integrar a diferença, dentro de casa, do próprio quarto. “Nem sempre é fácil, até porque, com 12 anos, elas não sabem bem o que é a diferença.” Palavra de pai.
Família Centeno, com Dasha (de vestido claro)
antónio pedro ferreira
Desde o início, Dasha chamou-lhes pai e mãe. Sem indicação nenhuma, sem pedido de ninguém. Chamou e pronto. E eles souberam responder. Com 13 anos, mas parecendo mais nova, repetiu a estadia em Portugal. É considerada um dos casos mais vulneráveis do programa, vive com uma família numerosa de acolhimento. Rebelde nas atividades desportivas do colégio durante o dia, em casa mostrou-se sempre educada, prestável. Impecável”, resume Ana, a “mãe” portuguesa. Ao ponto de, nas compras do supermercado, ser ela a mais disponível para ajudar a levar os sacos…De tal forma se sentiu em família que, quando o casal saiu uma noite para jantar fora, não conseguiu dormir enquanto não voltaram. Sentada na cama, esperava o beijo de boa noite. Cumprida a tradição, virou-se para o lado e dormiu. Carinhosa, sentava-se no colo do “pai”, Miguel, para ver televisão. Não pediu para ligar para ninguém na Ucrânia, não chorou com saudades de casa. Perguntou por uma avó, queria uma babushka. Agora, reconhecem todos, fica uma ligação que não é fácil de romper. Tanto que, sem dizer, contou à “mãe” o que lhe ia no peito: “Mãe, dois!” Dois dias para a partida.
Sentada nas escadas do refeitório e com os olhos postos no chão, Dasha foi muito breve na sua conversa: “O amor desta família vai ficar para sempre no meu coração”. Levantou-se, ajeitou o vestido da “irmã” portuguesa e foi-se embora, aproveitar os últimos instantes.
Família Sousa, com Oleksii (ao centro)
antónio pedro ferreira
Não houve preparação, o que houve foi uma conversa de família. O colégio apresentou a iniciativa, todos conversaram em casa e decidiram participar. Como sempre fazem, em diálogo. Os rapazes, Rodrigo, o português, e Oleksii, o ucraniano, ambos com 12 anos, ambos tímidos, deram-se bem desde o início. Como? Jogando Playstation. Começou por ali, à volta de uma consola e pela cumplicidade do jogo, que se partiu o gelo. “Criou-se um vínculo de comunicação, quando a diferença de línguas se revelava um problema”, conta Paula, a mãe de Rodrigo, para quem o idioma nunca foi um verdadeiro problema. “Recorremos a vários utensílios linguísticos, ao inglês, ao Google…” Depois, veio o xadrez, vieram as piscinas, os passeios por Sintra, a ida ao estádio do Benfica, ao Jardim da Estrela, uma noite inesquecível no Marquês de Pombal, quando Portugal sorria e celebrava a conquista do Campeonato Europeu de futebol. De tal forma as memórias são para guardar que Rodrigo e Oleksii aceitaram participar no desafio lançado pelo Expresso: foram fotografando e se deixando fotografar na intimidade do dia a dia, em que revelam nas imagens uma parceria construída para além das diferenças.
E foi precisamente na falta de diferenças que o Rodrigo se focou quando falou connosco: “Jogamos os mesmos jogos de consola, gostamos de futebol e adoramos falar de raparigas.” Este último tópico é segredo, dizem. Pelos vistos Oleksii apaixonou-se durante a sua estadia cá. Nunca houve tempo nem espaço para tristezas. Não se falou de guerra, de mortes nem de bombardeamentos. “Oleksii nunca falou sobre isso, e eu nunca me senti confortável para lhe perguntar o que quer que seja sobre a guerra”, contou-nos o pequeno português. “Ele estava feliz e isso é o que interessa”.
E estava. Muito feliz. A sua noite favorita é partilhada por mais de 11 milhões de portugueses: a noite da conquista do Euro em Paris. “Fomos para o Marquês de Pombal, onde gritei por Portugal com o resto da família.” Falou com a mãe todos os dias para lhe contar as aventuras e está ansioso para voltar e abraçá-la. Nestas três semanas só houve uma falha: “Não conheci o Cristiano Ronaldo.”
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