Um fado sobre carros e atropelamentos em Lisboa? E porque não? - Mensagem de Lisboa

Um fado sobre carros e atropelamentos em Lisboa? E porque não? – Mensagem de Lisboa

maio 2, 2024
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Lisboa que já foi moça e menina
um fado por Rita Dias (cantar sobre Lisboa Menina e Moça de Carlos do Carmo)
No Castelo, o povo está velho
Em Alfama, perdi o olhar
E assim encaro o cortejo
Que me faz chorar.

Da Ribeira eu tiro a cabeça
Os cruzeiros inundam o Tejo
Há turistas bordados à pressa
Não há casas, nem beijos.

Lisboa, que já foi moça e menina
Sem luz para os olhos meus, tão pura
São prédios, não são colinas, vitrina
Extorsão de dinheiro à porta, tão dura

Cidade em ponto morto levada
Colunas à beira-mar vendidas
Lisboa, se queres ser moça, batalha
Coragem, mulher, p’ra outra vida

No Terreiro, eu fujo de ti
E na Graça, os carros são ruas
As crianças não brincam, nunca vi
Ó Mulher, que cidade é a tua!

E do bairro mais alto componho
Este fado que um dia foi p’ra lembrar
Que Lisboa ainda é vida e é sonho
De quem quis aqui morar.

Este fado foi construído num workshop que fiz no âmbito de uma ação Com Gente Dentro, em que a ONG Lisboa Possível e o partido Volt abriram a Rua e a Travessa dos Mastros a moradores, moradoras e a visitantes – sem carros. Entre as 10h00 e as 23h00, houve momentos para caminhar livremente, para pedalar, para brincar, para explicar o clima às crianças, para um debate sobre como mudar o sistema, para o meu workshop de fado ativista, para sessões de poesia, para um concerto de música brasileira e, no final, para o desejado silêncio.
A iniciativa esteve de acordo com a missão do coletivo Lisboa Possível, que defende que “Lisboa com zero carros é possível” e, entre várias ações em curso e até mesmo uma Escola de Ação, é promotora de três petições que ainda estão a decorrer: Estacionamento Bici, para o estacionamento de bicicletas seguro perto de casa; Baixa Ciclável, para uma rede de ciclovias seguras na Baixa de Lisboa; e 30 km/h, para alterar o limite máximo de velocidade de 50 km/h para 30 km/h em áreas urbanas.
É, como se vê, uma organização que trabalha para a evolução verde da cidade de Lisboa e que tem conseguido resultados, um dos quais a recente duplicação da duração de um semáforo na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, contribuindo para a segurança de peões.
Durmo melhor à noite por saber que existem grupos diferentes de pessoas a travar lutas diferentes, de modo a que nenhuma fique sem voz. Só assim a democracia funciona no terreno. Cidadãos e cidadãs influenciam e desafiam o poder político, modelam-no, e o poder autárquico em particular beneficia com isto. Bem como nós.
Por isso, esta não foi a primeira vez que acedi ao apelo da Lisboa Possível para fazer parte das suas ações, por acreditar naquilo que defendem. Embora goste da cor do Volt e até simpatize com a visão ao mesmo tempo próxima das pessoas e próxima da Europa, não é a minha cor política. Mas, como esta ação de rua sem carros não teria sido possível sem a intervenção do partido, que a viabilizou enquanto ação política junto da entidade competente, pareceu-me tudo adequado.
Às cinco da tarde chegou o meu momento artístico formativo e ativista. Eu gosto de cantar fado, gosto de escrever para fado, mas mantenho a teimosia de reforçar que não sou fadista. Há muito boa gente que dedica a vida a fazê-lo. Prefiro manter-me na prateleira de aprendiz (no fado e em tudo, por princípio) e está ótimo.
Neste workshop, nem tudo correu como esperava.
Houve um brasileiro que se sentiu ofendido com o uso da palavra caipirinha no contexto da canção Hostel da Mariquinhas, interpretada por Gisela João, com letra da Capicua, que partilhei: “Da recepção ao terraço/ P’ro turista modernaço/ A senha da internet é alfacinha/ ‘Tuga é só um empregado atarefado/ A servir a caipirinha”.
Houve duas pessoas que se desentenderam, enquanto trabalhavam em grupo, porque uma não queria generalizar que a cidade de Lisboa era uma cidade de atropelamentos com mortes em cada esquina e a outra defendia exaltadamente que era.
Houve pessoas que nem sequer foram ao workshop porque entendem que o fado é uma canção que evoca marinheiros, marinheiros esses que em tempos exploraram pessoas dos países onde nasceram.
E, lá pelo meio, houve uma nova letra que nasceu para a canção Lisboa, Menina e Moça (o Ary, o Tordo, o Paulo de Carvalho e o Carlos do Carmo que me perdoem, mas a cidade já não é o que era) e houve pessoas a gostar daquela hora que passámos juntos e juntas. Acabámos a cantar.
Na altura em que estes acontecimentos em cadeia se deram, mantive-me focada em manter a atividade de pé, não usei da minha palavra para responder caso a caso. Não podia. Agora posso.
Ao senhor que se ofendeu, agradeço-lhe e a todos os brasileiros que fazem boas caipirinhas, boas refeições, bons poemas, bons projetos e tudo o que fazem de maravilhoso em Portugal. Da parte que me toca, e tendo vivido duas vezes no Brasil, os meus braços estarão sempre abertos que nem os do Cristo.
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Relativamente aos atropelamentos, Portugal é o país da Europa Ocidental com mais mortes de peões por milhão de habitantes, em média morre uma pessoa a cada três dias. Vejamos em Lisboa. De acordo com a Pordata, em 2022, houve 4.744 atropelamentos e 70 mortes em Portugal Continental (em 1960, o primeiro ano da análise, houve 6.941 atropelamentos e 337 mortes). O Observatório do Automóvel Clube de Portugal, com dados entre 2010 e 2016, diz que a Área Metropolitana de Lisboa representou 24% do total nacional de peões vítimas mortais.
Ora, fazendo um uso arriscado desta percentagem para o ano de 2022, isto daria aproximadamente 17 mortes em atropelamentos em Lisboa, o que dá uma pessoa e meia a morrer por mês na cidade.
Não devia morrer ninguém, é um facto indiscutível, mas, mesmo com o número de carros a aumentar (só em 2020, de acordo com o Instituto de Mobilidade e Transportes e do Instituto Nacional de Estatística, houve 5,6 milhões de automóveis ligeiros de passageiros em circulação), os esforços que têm vindo a ser feitos. Não estamos bem, mas já estivemos pior.
Em relação a quem nem sequer veio ao workshop, e perdoem a analogia clichê, tenho pena quando a opção é erguer muros em vez de pontes. Sou ocidental, branca, nascida no litoral, heterossexual e de classe média. Por muito que estude, que me mantenha informada e que trabalhe diariamente a minha sensibilidade para os lugares dos outros, parece cada vez mais vincado que o peso do meu privilégio em vários níveis me deve remeter ao silêncio, à ausência de voz para protesto.
Não quero. Ensinem-me.
Permitam que a História se refaça, se reponha, seja mais justa. Carrego a herança de quem viveu antes de mim, mas eu sou eu, agora. E combato a supremacia ocidental, o racismo, a xenofobia, as assimetrias regionais, os ataques à orientação sexual e a opressão. Por muito verde e polida e certa e modernaque a cidade fique, não me parece uma Lisboa possível sem comunicação entre pessoas diferentes e sem tolerância para a realidade de quem está próximo.
Por fim, agradecendo o carinho e a presença das pessoas que estiveram presentes, despeço-me da mesma forma que a Capicua, que a primeira vez que apresentou publicamente a letra do Hostel da Mariquinhas foi num artigo, artigo esse que foi parar aos olhos da Gisela João.
Nunca se sabe.
*Nascida em Coimbra em 1989, Rita Dias canta, compõe, escreve e representa. Lançou o disco “Com os pés na terra”, participou no Festival da Canção e editou o livro de poesia “O Encontro do Tempo Ternário”, em Portugal e no Brasil. Em 2020/2021, estreou-se em duas peças de teatro e, em 2022, lançará o seu segundo disco, “Morremos tanto para crescer“.
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